Artigo Científico: Cadernos Junguianos n.13 – 2017

Cadernos Junguianos

Introdução, a medicina e a psicologia unidas pela dor

Este estudo é uma análise simbólica da qualidade de vida dos pacientes portadores de síndromes dolorosas crônicas a partir da visão da psicologia analítica. Consideraremos, como protótipo da dor crônica, a fibromialgia, para expor, por meio de um mito, um caso clínico piloto cujo paciente é hipotético e universal. Para tal, usaremos o método da amplificação mítica e alquímica de Jung.

Trata-se de uma dor complexa, existencial, nem sempre lógica, vinculada a um sofrimento psíquico de caráter arquetípico da maior relevância. O grupo de pessoas portadoras desenvolve uma série de alterações nos neurônios e neurotransmissores e, consequentemente, modificações na modulação sensorial, tanto no sistema nervoso central quanto no periférico, que causam a cronificação do sintoma da dor.

A partir de descobertas histoquímicas dessas modificações em nível anatômico e fisiológico, isto é, na forma e na função, o que antes era considerado apenas um sintoma passa a ser reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2001, como uma entidade patológica denominada Doença dor crônica, classificada no Código Internacional de Doenças como R-52 e suas derivações.

Segundo a OMS, “dor é uma experiência emocional, com sensação desagradável, associada à lesão tecidual presente, potencial ou descrita como tal” (Cavalcanti, 2003: 14). É subjetiva e advém de experiências prévias individuais, o que indica a “participação de mecanismos relacionados aos aspectos discriminativos, às emoções e ao simbolismo das sensações” (Teixeira, 2006: 9).

O quadro clínico é rico em sintomas que provocam desequilíbrio emocional. O primeiro e principal sintoma relatado é a dor intensa e contínua no corpo todo, geralmente acompanhada de exuberante tonalidade afetiva; mais de 90% do público portador é feminino, com idade entre 30 e 40 anos. Um tratamento dito bem-sucedido sugere recuperação de 50% do quadro por três meses e recidivas a intervalos semelhantes. Além da dor difusa intensa, as pacientes apresentam distúrbio do sono, insônia, fadiga crônica, exaustão, a teração do humor, dor abdominal, cansaço físico e mental, falha da memória, depressão. A morte exerce verdadeiro fascínio sobre elas. Um sintoma desencadeia a piora dos outros, num círculo vicioso enlouquecedor e paralisante. A dor contínua não permite o sono restaurador e, quando adormecem, acordam com medo da dor prometida, que vai voltar num ciclo repetitivo e torturante. O tratamento é espocífico e a melhora mais expressiva está associada à maior compreensão do sofrimento envolvido, sendo que é nele que está sua provável origem. A partir daqui nosso foco se voltará para esse sofrimento doloroso que passa para o primeiro plano e merece nossa maior atenção.

As histórias clínicas e pessoais de cada paciente já são, por si só,

Símbolo que se repete num movimento circular e aos poucos se consolida sob a forma de um mito coletivo, estabelecendo conexões em diversos níveis. Esse símbolo mítico reflete a doença do grupo e assume a forma de um mito maior, primordial, anterior ao mito pessoal e, portanto, seu facilitador, que abarca o aspecto da experiência humana degradante: adoecemos, envelhecemos e morremos.

Certos grupos de pessoas, ao não confrontar o conflito, experimentam esse sofrimento sob a forma de uma sensação dolorosa arquetlpica. Identificar e dar identidade ao arquétipo posiciona o paciente em relação ao seu lugar no mundo, ressignifica sua importância como ser único. O núcleo arquetípico do complexo, revestido da história de cada um, é universal e comum aos portadores de dor crônica. Sua verdadeira identidade primordial chega a nós por Ésquilo (525 a.C.) em sua tragédia Prometeu acorrentado, drama comum aos que se encontram presos a uma sensação dolorosa torturante, constante e sem fim; como a de Prometeu imposta por Zeus. Antes ainda, no final do século VIII a.C., “quando o pensamento racional começava a pré-figurar-se” (Torrano, 2001:15), Hesíodo nos deixa sua colaboração com a Teogonia e o mito das cinco Eras, com suas cinco raças correspondentes, onde apresenta a cosmogonia, a origem dos deuses e da dor, e descreve a degradação ética e moral da raça humana desde os primórdios até aqueles dias. Nesse período, a escrita poética arcaica remonta a um funcionamento psíquico anterior à razão, a um pensamento simbólico: arquetípico.

O mito da dor: Prometeu e Io

No início era o Kaos. Dele nasce Nix, a noite escura. E dela nasce uma prole sombria como Dor, Fadiga e Miséria… e depois de muito, muito tempo… Na Terra durante a era do ouro, os homens viviam em paz com os deuses… Mas… Prometeu comete uma sucessão de transgressões em favor da humanidade contra Zeus e recebe deste uma série de castigos. É acorrentado pelos membros ao rochedo do Cáucaso, no limítrofe chão de terra, em imortal solidão, submetido às tormentas do mar intempestivo. Longe dos humanos, seus protegidos, é derrubado no Tártaro para lá passar dez anos em Nix, filha do Kaos, na escuridão da Noite sem fim, recolhido da presença em Zeus, que agora habita o Olimpo. Ao voltar, é submetido à tortura de uma águia que lhe devora o fígado imortal sob os horrores da indigna dor para que, no dia seguinte, no outro e no próximo também, após regenerar-se, continue a tortura sem fim. Durante sua estada centenária sob interminável tortura, aparece Io, uma princesa seduzida por Zeus e transformada em novilha pelo ciúme de Hera.

Hera ordena também que um moscardo torture Io, perseguindo-a e picando-lhe os flancos com infindável dor. Sem ter como se defender, a novilha corre tresloucada, sem rumo, sem consciência, tiaçando um verdadeiro mapa geográfico, cujo mar leva um nome: mai Jonico. Prometeu, que rebelde reclama a injustiça sofrida, passa a ter com Io uma atitude reflexiva e é com quem sofre uma experiência que transformaria a vida de ambos. Dá a Io um novo significado de vida com a profecia de que seu descendente, um herói, daqui a treze gerações trará a liberdade prometeica e o salvará. O mágico encontro leva-os a reconhecer o sofrimento como um agente de transformação. A imortalidade do titã é proposta como moeda de troca pela sua liberdade. Enquanto isso, na Terra, a humanidade passa por uma série de degradações, caindo da Era do Ouro, em comunhão com os deuses, para a de Prata, em desacordo com Zeus, e depois para as bélicas raças de Bronze e Ferro, numa sucessão de desgraças, isolada de seu benfeitor. No cativeiro. Prometeu aprende com seus erros, reconhecido por Zeus reconquista sua imortalidade e pode voltar a conduzir os homens rumo ao desenvolvimento. Enfim, é libertado por seu salvador, Hércules, descendente de Io e pertencente à raça dos Heróis, que Hesíodo nos presenteia como a esperança num futuro melhor para a humanidade.

Amplificações: o caminho da humanização do arquétipo da dor

O mito de Prometeu é a coagulatio por excelência. Ele traz consigo o desejo e “desejo coagula” (Edinger, 2002:105). Traz para o humano a possibilidade de desenvolver novas experiências psíquicas, trazer à luz aspectos inconscientes, mas, para isso, despenca do sublime mundo da Era do Ouro, onde não havia trabalho nem dor, para a vida na Terra na Era do Ferro (Lafer, 2008). Coagulatio significa encarnar, isto é, estar ligado a um ego. Incorpora, portanto, conteúdos arquetípicos ao ego (Edinger, 2002). “Todo processo inicial de desenvolvimento psíquico individual – o surgimento do ego a partir do seu estado original de unicidade com a psique objetiva – pode ser tido como um processo de coagulatio” (Edinger, 2002: 115) e pode iniciar seu caminho rumo ao processo de individuação através da personalização das figuras arquetípicas (Edinger, 2002).

O agente causai é a hybris, uma desmedida, e é este exatamente o papel que Prometeu exerce ao decair da Era do Ouro para cada uma das eras subsequentes (Lafer, 2008). Nesse sentido, o deus rebelde pratica uma proeza e isto significa, em termos psicológicos, que a atividade e o movimento psíquico promovem o desenvolvimento do ego. A exposição à tempestade e á tensão da ação […] solidifica a

personalidade” (Edinger, 2002: 103).

De acordo com os decaimentos das eras e suas respectivas raças a experiência do sofrimento e da dor revela estado de privação, corrí a condenação de Prometeu ao exílio (Torrano, 2009). O titã como um “espírito autônomo da psique arquetípica” (Edinger, 2002 103), submetendo-se à coagulatio, pode buscar a individuação “Representa o princípio da intelectualização” (Lafer, 2008: 64) pondo fim à Era do Ouro (Lafer, 2008) e iniciando, com a Era dá Prata, um mergulho na construção da ampliação da consciência

O mito traz, portanto, castigo, tal como é sentido no sofrimento no contato com a sombra, mas, do ponto de vista da psicologia analítica, é a possibilidade de desenvolvimento de conteúdos trazidos à luz da consciência, antes estagnados no inconsciente (Jung 1991b) Prometeu aniquila-se (Torrano, 2009). Nesse contexto, o homem agora também está sob o domínio da operação coagulatio. Vive, portanto, fora do mundo divino agora também intangível. Tártaro e Olimpo estão do lado de fora, subjazem inacessíveis na sombra. O que antes era vivido em plenitude e unicidade no mundo arquetípico vai se tornando puro instinto selvagem na vida da Terra durante a Era do Ferro (Lafer, 2008). Nesse momento Prometeu está ausente no Tártaro; portanto, o uso da consciência racional foi um fracasso anunciado por Zeus (Torrano, 2001).

O Tártaro explicita o sentido geográfico do não pertencimento, no limite do fundo da Terra, privado de qualquer chão, onde a luz não alcança; o profundo estado psíquico em que um ser possa não existir. Ausência de luz e de orientação são “pura queda cega sem direção e sem fim” (Torrano, 2001: 45). Trata-se da experiência da nigredo, e pertence à operação mortificatio. Esse sentido está implícito enquanto Prometeu é submetido à experiência da morte por meio de “dolorosos rigores infligidos ao corpo” (Edinger, 2002: 165). “A mortificatio é experimentada como derrota e fracasso. […]. De certa maneira, imposta pela vida, quer a partir do interior ou do exterior. […] pode […] dar início a um autêntico processo de transformação” (Edinger, 2002: 189).

No nível arquetípico, a mortificatio de um representante coletivo como Prometeu, um espírito ctônico, “refere-se à morte e transformação de um princípio diretor coletivo ou dominante” (Edinger, 2002: 170) para que haja renovação. Podemos pensar que um conteúdo dominante perdeu sua eficácia e regrediu ao nível da psique primordial e por isso deve transformar-se, mas para tal fica aprisionado. “A tortura é a provação implacável que promove a transformação (…] para que corpo, alma e espírito sejam unificados no interior de uma personalidade integrada”

(Edinger, 2002; 171). Prometeu é submetido à tortura aprisionado no Tártaro, numa referência de retorno ao vaso alqulmico, para de lá sair transformado.

De acordo com os decaimentos das eras e suas respectivas raças a experiência do sofrimento e da dor revela estado de privação, corrí a condenação de Prometeu ao exílio (Torrano, 2009). O titã como um “espírito autônomo da psique arquetípica” (Edinger, 2002 103), submetendo-se à coagulatio, pode buscar a individuação “Representa o princípio da intelectualização” (Lafer, 2008: 64) pondo fim à Era do Ouro (Lafer, 2008) e iniciando, com a Era dá Prata, um mergulho na construção da ampliação da consciência

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